Crônica das UPPs
- Rubens Buarque de Gusmão
- 17 de abr. de 2018
- 4 min de leitura
Mestre em Geografia – UFRJ
Pesquisador do GEOPPOL (UFRJ)
Não é de hoje que a problemática das favelas cariocas gera certa inquietação e desconforto no poder público no que diz respeito à necessidade de ordenamento e gestão desses espaços. Obstáculos como o controle territorial do tráfico, a carência de espaços de interlocução e a descontinuidade de ações governamentais tornam ainda maior o desafio do Estado. Embora o discurso dos governantes e a natureza das políticas públicas direcionadas às favelas tenham mudado ao longo do século passado, ocorreram poucos avanços concretos no sentido de atender o real interesse de seus moradores.
As primeiras décadas do século XX são um período emblemático para as favelas do Rio de Janeiro, não apenas pela sua recém “descoberta” pelos entes públicos, mas especialmente pelo tom agressivo das ações do Estado para com esses espaços, tratados como lugares hostis, que deveriam desaparecer.
Historicamente os habitantes das favelas tiveram que recorrer ao senso coletivo e à capacidade de improvisação para estruturar seus locais de moradia. Década após década, as mobilizações pelo direito à cidade ganharam corpo e a questão das favelas adquiriu maior visibilidade. O abrandamento do regime militar depois de 1975, fez com que a política de remoção ficasse em segundo plano e o discurso agora pairava em torno das propostas de integração do território das favelas ao restante da cidade.
Contudo, a fenda deixada pelo Estado cedeu campo para a consolidação do domínio territorial de grupos criminosos, sobretudo a partir dos anos 80, com o aumento significativo da força bélica dos traficantes. Desde então a dificuldade de acessar inúmeras comunidades vem prejudicando o êxito de políticas sociais nesses espaços.
Nesse contexto, em 2008 é criado o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), na comunidade Santa Marta, no Rio de Janeiro. Baseado em experiências similares em outros países, o projeto procurou replicar o policiamento de proximidade para desarticular o domínio territorial do tráfico, buscando reaver a presença ativa do Estado nas favelas ocupadas por grupos criminosos.
A principal distinção do programa das UPPs em relação às políticas públicas anteriores foi a ideia de ocupação contínua das comunidades. Desse modo, o intuito seria coibir a atuação do crime organizado nas favelas, através da presença permanente das forças de segurança nesses territórios. Somente depois de assegurado o controle territorial do Estado, outros projetos de cunho social poderiam ser implantados. A vertente assistencial ficaria a cargo do programa UPP social, que ofereceria uma série de equipamentos e serviços visando reduzir as disparidades socioeconômicas nas favelas, como assistência social, aporte infraestrutural e apoio ao empreendorismo. Todo esse leque de serviços seria ofertado de acordo com as demandas de cada comunidade. Nesse sentido, a criação de espaços de interlocução continuada nas favelas teria um papel central, articulando os interesses de moradores, lideranças locais e poder público.
Em um primeiro momento, o Programa das UPPs conquistou a simpatia de boa parte dos veículos de comunicação e da opinião pública. A redução dos índices de criminalidade nas favelas ocupadas e bairros de entorno, bem como o aumento da sensação de segurança dos moradores contribuíram para esse otimismo. Talvez o evento que simbolize melhor a expectativa criada em torno das UPPs tenha sido o hasteamento da bandeira do Brasil no topo do Complexo do Alemão pelas forças de segurança, em 2010. Na visão de muitos, algo improvável de ser presenciado. Contudo, o bom presságio sobre o futuro do programa esteve longe de se tornar realidade e gradativamente o projeto entrou em decadência, por diversas razões.
Um primeiro problema que merece atenção refere-se à ausência de planos de contingência eficazes durante a ocupação dos territórios. A estratégia de anunciar dia e hora de muitas incursões foi bastante questionada, em especial a forma como foi conduzida. Embora se admita que o aviso prévio de uma ocupação contribua para evitar confrontos e preservar a vida de civis, a falta de monitoramento da fuga de criminosos pode gerar transtornos que vão muito além da escala local. Um dos reflexos da migração de traficantes foi o aumento dos índices de violência em diversos bairros e municípios, tanto dentro quanto fora da Região Metropolitana do Rio.
Outra falha do programa das UPPs consistiu na insuficiente capacitação dos policiais. Arbitrariedade, truculência e violação de privacidade foram algumas das queixas mais ouvidas de moradores contra as ações das forças de segurança nas favelas com UPPs. O despreparo dos policiais lotados nas UPPs ficou visível em diversas situações, desde abordagens agressivas até culminar na morte de civis em ações precipitadas. Ainda mais grave que a falta de treinamento das equipes de segurança, foram os frequentes casos de corrupção de policiais, resultando em omissão ou mesmo conivência com o tráfico, fato que permitiu a restruturação do poder bélico dos traficantes e comprometeu seriamente o plano de pacificação.
Entre as diversas lacunas presentes no desenvolvimento das UPPs, talvez o fracasso mais contundente tenha sido o projeto UPP Social. A ideia de criar espaços de interlocução entre Governo e moradores nas comunidades não se concretizou, muito em função da carência de recursos e da falta de sensibilidade do poder público, que não destinou a mesma atenção ao braço social do projeto. Os fóruns de discussão, tão badalados no início, tornaram-se raros e pouco produtivos, quase procedimentos burocráticos para ratificar políticas públicas engessadas, sem participação significativa da população local. A análise das demandas e potencialidades de cada favela foi comprometida pela escassez de profissionais habilitados para dialogar, entender o cotidiano dos moradores. Em não raros casos, procurava-se atribuir essa função aos policiais, acostumados a fazer valer sua autoridade através do exercício da força.
Em suma, é possível evidenciar que a recente crise financeira do Estado do Rio de Janeiro apenas acelerou a decadência do programa das UPPs, algo que parecia inevitável. Após um início promissor, o ambicioso projeto de pacificação colecionou insucessos. A falta de canais de diálogo sólidos minou a confiança dos moradores, sentimento sem o qual qualquer política direcionada às favelas perde a lógica e o vigor.
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