O ano político de 2018 da América Latina
- Daniel Abreu de Azevedo
- 24 de abr. de 2018
- 5 min de leitura
Doutor em Geografia - UFRJ
Professor do Colégio Pedro II
Há quase 40 anos, Edward Said defendeu, em Orientalismo, que o “Oriente” não existe realmente: é uma construção europeia, um produto intelectual europeu, ou, em outras palavras, uma imagem do Outro que permite, ao definir o Outro, identificar-se a si mesmo como europeu, como ocidental. Esse trabalho foi um marco para discutir como a construção da alteridade possui uma espacialidade clara.
Como em Orientalismo, nunca é exagerado lembrar que a região denominada América Latina é uma construção. Como o geógrafo sabe bem, regionalizar é, sempre, um ato político, pressupõe generalizações e tem um claro rebatimento material e imaterial na sociedade. Longe de abrir mão dessa análise espacial, precisamos, por outro lado, nos questionar sempre sobre nossas classificações e diferenciações de áreas. Politicamente, o ano de 2018 nos permite repensar essa região. Em que medida a região América Latina nos ajuda, hoje, a compreender a política desses países e vice-versa?
Apesar da grande diversidade política dos países ao sul dos Estados Unidos, tendemos também a regionalizá-los a partir de seu caráter político. Durante a década de 1990, afirmou-se que esses países seguiram o Consenso de Washington e adotaram o neoliberalismo; durante grande parte do início do século XXI, a América Latina foi vista como o berço de uma ideologia política, que buscava seu ar de originalidade, apesar de assentada em bases antigas: o bolivarianismo chavista. Mesmo que saibamos que há uma diversidade dentro do movimento chavista e, mais ainda, na denominada América Latina como um todo, discursos políticos e projetos supranacionais (como o caso da UNASUL) revelam quando discursos regionais se transformam em práticas efetivas no território.
O ano de 2018 é marcado por uma convergência das agendas eleitorais de diversos países da denominada América Latina. Após três eleições no ano passado (Equador, Chile e Honduras), esse ano seis importantes países escolherão seus novos governantes. É um momento para reavaliarmos essa regionalização com viés político. É possível (se já foi possível algum dia) afirmar que existe um bloco político coeso ou seria a multilaterialidade político-ideológica a bola da vez na região?[I1]
Em fevereiro, foi a vez da Costa Rica, uma nação que nas últimas décadas se figurou entre as democracias mais consolidadas de toda a região. Em jogo, esteve a sua permanência nesse posto: no segundo turno, disputaram dois candidatos que defendiam posicionamentos opostos. O primeiro, do partido conservador, evangélico – a religião neoprotestante cresce em ritmo acelerado na Costa Rica – e falava abertamente contra o Estado secular e negava, por exemplo, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Venceu o candidato governista, abertamente favorável à decisão do dia 11 de janeiro de 2018 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (situada exatamente em San José) sobre o casamento homossexual. Mesmo assim, o movimento contra o Estado laico na Costa Rica é algo a se preocupar.
Em abril, os paraguaios foram às urnas. Em meio a um crescimento econômico expressivo contrastando com seus vizinhos em crise, o Paraguai decidiu se o Partido Colorado se manteria no poder – mesmo tendo sido o único partido permitido a existir durante a ditadura (1954-1989) e aquele que governa o país desde o final do período autoritário, com exceção de 2008, quando sua candidata perdeu a primeira eleição presidencial na história do Partido para o eleito Fernando Lugo. Entretanto, com um processo de impeachment polêmico, Lugo foi destituído quatro anos depois (no Paraguai, o mandato dura cinco anos sem possibilidade de reeleição) e o Partido Colorado voltou ao poder em 2013. Com um pouco mais de 42% dos votos e o pedido de recontagem do segundo colocado, no dia 22 de abril, o Paraguai, mais uma vez, não escolheu pela alternância de poder. Qual o peso dessa decisão para a democracia desse país?
Um mês depois, os colombianos. Em maio, o acordo de paz assinado em 2016 com o grupo guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (atual Força Alternativa Revolucionária do Comum) será colocado em teste. Apesar de seu líder ter tirado sua candidatura ao cargo presidencial por problemas de saúde, se enfrentarão na disputa candidatos que foram favoráveis ao acordo e os seus ferrenhos críticos. Tudo leva a crer que poderá ser visto, assim como nas eleições legislativas no início do ano, o descontentamento da população em relação ao acordo de paz selado com as FARC pelo atual presidente Juan Manoel Santos.
Já na Venezuela, inicialmente planejadas para acontecer no final do ano, as eleições foram antecipadas para maio, como um modo, segundo os críticos ao governo Nicolás Maduro, de desarticular a oposição e influenciar os resultados. Marcada por prisões questionáveis, impedimentos judiciais de participação de partidos políticos da oposição e boicote internacional, a crise política na Venezuela fomenta a crise humanitária, e vice-versa, em uma bola de neve que parece estar longe de diminuir, principalmente em uma eleição na qual os maiores opositores não participarão. A falta de legitimidade democrática certamente continuará na Venezuela após 20 de maio, aprofundando uma crise que já é considerada sem precedentes no país.
Entretanto, os olhos do mundo estão voltados para as eleições das duas maiores potências geoeconômicas da região: México e Brasil. Em um país onde o presidente é eleito por seis anos sem possibilidade de reeleição, é Andrés Manuel Lopez Obrador que se apresenta em todas as pesquisas com maiores chances de ganhar as próximas eleições. Em 2006, ele as perdeu para Felipe Calderón por apenas 0,56 pontos percentuais, provocando uma onda de protestos e pedidos de recontagem. Em 2012, voltou a perder as eleições para o atual presidente Enrique Peña Nieto. Sendo comparado ideologicamente a Hugo Chávez ou ao ex-presidente Lula (incluindo sua coligação com o Partido dos Trabalhadores mexicano), López Obrador prometeu entrar no governo e rever grandes contratos realizados no mandato anterior, incluindo a maior obra de infraestrutura na região: o novo aeroporto da Cidade do México. A liderança econômica mexicana vê com preocupação, cada vez mais, a possível vitória de López Obrador, enquanto os jovens mexicanos apoiam sua candidatura. Zócalo, a praça que representa o maior espaço político aberto do país, espera pelo seu próximo governante.
Em outubro será a vez do Brasil. Com as eleições presidenciais mais incertas desde 1989, provavelmente haverá uma grande quantidade de concorrentes. Com a saída do ex-presidente Lula devido sua condenação em 2ª instância e a Lei da Ficha Limpa, o cenário está cada vez mais difícil de prever. Partidos de esquerda que antes orbitavam ao redor do Partido dos Trabalhadores parecem querer lançar candidaturas próprias; candidatos de uma direita conservadora saem do armário e ganham força; outros se apresentam como “centro”, sem grandes clivagens ideológicas; há, ainda, os “de fora” que podem mudar esse cenário com o discurso cada vez mais comum contrário ao político tradicional. A necessidade urgente de um governo que ganhe a legitimidade do voto torna outubro de 2018 um mês fundamental para se pensar também o Brasil.
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