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As ruas e a política

  • Iná Elias de Castro
  • 21 de out. de 2019
  • 3 min de leitura

Professora Titular de Geografia - UFRJ

Coordenadora do GEOPPOL

Ruas e praças são espaços de circulação, de conexão entre lugares e pessoas, de definição das coordenadas de endereço, dos encontros. No entanto, esta objetividade fria transforma-se quando algumas delas tornam-se espaços de manifestação política e são coloridas pelo calor das multidões, seus gritos e palavras de ordem, seus cartazes com críticas, desejos, recados, reivindicações, bem humorados ou não, pacíficos ou não, mas sempre difíceis de ser ignorados.

O que existe de tão assustador nas ruas e praças quando se tornam palco e oferecem aos olhos e aos ouvidos da sociedade uma cena política, colorida, cujo controle é frágil e o risco da violência - individual ou coletiva - é latente?

Manifestações políticas nas ruas não são problemas novos, no Brasil ou no mundo. Mas, a multiplicação dos aparelhos celulares e a quase ubiquidade das redes sociais são. Ambos são produtores e reprodutores de imagens que mobilizam sentimentos tão rapidamente quanto intensamente e largamente. Impossível fingir que não se vê.

Para ficar em casos mais recentes: os coletes amarelos na França e os mascarados no Equador são a expressão, em dois continentes diferentes, de um mesmo fenômeno: a conexão entre a economia e a política; na Ásia, os guarda-chuvas de Hong Kong protestam contra projeto de lei da China que ameaça a autonomia da Província. Sejam causas econômicas ou ameaças de restrições legais, os movimentos nas ruas ganham apelidos que expressam o poder simbólico da imagem que eles projetam.

Trata-se, na realidade, de uma forma de conexão entre os indivíduos - cidadãos - e seus governantes que explora sabiamente uma nova paisagem política nos espaços urbanos mais densos, de maior visibilidade nacional e internacional. Nos dois primeiros casos, os governos da França e do Equador recuaram de seus respectivos projetos de redução de subsídios aos combustíveis. No caso de Hong Kong o enfrentamento é mais complexo, tendo em vista que não há regras democráticas que se imponham ao governo de Pequim.

Outras manifestações recentes foram aquelas contra as mudanças climáticas realizadas simultaneamente em várias cidades do mundo às vésperas da Conferência sobre o clima realizada na ONU em Nova Iorque, em Setembro deste ano. Capitaneadas pelo movimento Fryday for future, liderada pela jovem estudante Greta Thunberg, essas manifestações demonstraram capacidade de organização e de mobilização global, favorecidas pelo discurso a favor do Planeta e do futuro. As imagens produzidas pela presença de jovens e crianças fez emergir uma paisagem particular, de chamada ao compromisso dos governantes com o futuro.

O que as ruas nos dizem sobre a política e por que elas devem ser cada vez mais objeto de atenção? Se elas são calmas e apenas espaços do cotidiano social há duas possibilidades: um perfeito equilíbrio entre as demandas sociais e a oferta de políticas públicas por parte dos governos ou as demandas, que por acaso existam, estão sufocadas por governos repressivos. Mas se as ruas estão tomadas por multidões mobilizadas em torno de reivindicações, precisas ou difusas, estamos diante de um fato político da maior importância. E neste caso proponho três considerações

Em primeiro lugar, a ordem aqui não é por importância mas aleatória, porque algumas ruas são escolhidas para a mobilização e outras não? Já é possível identificar alguns padrões que obedecem a critérios espaciais de visibilidade, de valor simbólico para a sociedade, de condições de movimentar-se e disponibilidade de pontos de fuga, para o caso de necessidade.

Outra consideração refere-se à conexão política. Manifestações nas ruas são políticas porque dirigidas ao governo. Comunicam demandas e insatisfações de setores da sociedade. A medida do porte dessas manifestações é a medida da pressão que são capazes de exercer sobre o poder de comando das políticas públicas. Deixar crescer a insatisfação é sempre um risco de crescimento da ameaça de desestabilização que ruas tomadas por multidões fazem sentir. Reações dos governos, seja no atendimento às demandas capazes de reduzir a pressão das ruas seja pelo recurso à violência, revelam evidências do potencial desse espaço político cada vez mais utilizado nas democracias contemporâneas.

Por último, as ruas revelam o potencial de violência que habita as entranhas das sociedades e este tem sido o maior desafio para os participantes e para os poderes locais. A violência pode emergir do sentimento de raiva dos manifestantes frente à violência policial ou constituir uma estratégia desestabilizadora, anti stablishment, de grupos ideológicos como os black blocs. Ou pode ainda ser uma oportunidade de visibilidade para grupos marginalizados que aproveitam para extravasar sua insatisfação frente à exclusão. Qualquer que seja a motivação, a violência é sempre uma preocupação dos organizadores frente ao risco de redução do apoio público aos manifestantes e às suas pautas. Também para os governos, ruas em chamas são ainda mais desestabilizadoras e, portanto indesejáveis.

Espaços políticos cada vez mais ativos, as ruas tomadas por manifestações constituem objeto de pesquisa inescapável da geografia política, pelos padrões que evidenciam, pelas novas paisagens que elas descortinam e pelo ethos social que elas são capazes de revelar.

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