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Carros sujos, ruas limpas

  • Sérgio Borges
  • 28 de out. de 2019
  • 4 min de leitura

Doutorando em Geografia - UFRJ

Pesquisador membro do GEOPPOL

“Isso a gente não vê no Brasil!”, disse uma senhora enquanto deambulava pelo City Park, um florido parque situado no campus da Universidade de Queens, em Kingston, Canadá. Quem caminha pelo parque se encanta, não apenas pela beleza das Tulipas e pelo canto dos pássaros (eles são muitos), mas, principalmente, pelas condições do local: perfeitamente limpo.

O comentário feito pela brasileira foi dirigido à sua acompanhante, que concordou sem contestar ou mesmo entoar aquela célebre frase eternizada por Nelson Rodrigues - isso é “complexo de vira-lata”. Bordão como esse é comumente citado quando se faz comparações entre a pátria, nem tanto tão amada, e países de “primeiro mundo”.

Todavia, no que refere às condições de limpeza e higiene dos espaços de sociabilidade em Ottawa, capital canadense, ou daquela que foi a primeira capital do país, Kingston, não resta complexo, ou melhor, dúvida. Mesmo durante o outono, quando milhares de folhas caem todos os dias, os espaços públicos estão em ótimas condições de limpeza e higiene. Eu faço essa afirmação sem nenhum complexo de inferioridade, mas para dizer que os canadenses possuem um tipo de relação, com os espaços públicos e do cotidiano social, muito oposta àquela que a maioria dos brasileiros tem com parques, praias, praças e ruas.

Quem nunca se deparou com dezenas de embalagens, copos descartáveis, palitos de picolé e churrasco espalhados pelas praias e parques de cidades brasileiras? Afinal, o cidadão brasileiro é imperfeito, tanto em direitos quanto em obrigações.

No entanto, foi durante algumas viagens de carro, entre e pelas províncias de Ontário e Quebec, bem como em caronas oferecidas por vizinhos amigos e colegas de apartamento em Ottawa e Kingston, que eu me deparei com dezenas de embalagens plásticas de cookies, copos recicláveis do Tim Hortons e até restos de hambúrgueres e batata frita no interior dos carros; ah, sem falar nos chips.

Nojento! Pensei dezenas de vezes, mas não verbalizei. Logo o meu espanto deu lugar à simples constatação: os carros estão sujos, mas as ruas estão limpas. Com esse hábito, que parece ser bem comum no Canadá, evita-se que dezenas de materiais recicláveis e lixo composto tenham como destino os espaços do cotidiano social – ruas, calçadas, praças e parques.

Atos simples como esses de civilidade e boas maneiras, dizem muito sobre o sentido de bem público, e mostram que nós, brasileiros, temos uma relação que é diametralmente oposta àquela que, aparentemente, a maioria dos canadenses tem com os espaços privados.

Enquanto no Canadá os ônibus e metrôs aparentam boas condições de higiene, o mesmo não pode ser dito a respeito dos carros particulares. Já no Brasil, não é tarefa nada difícil encontrar espaços públicos e transportes coletivos em péssimas condições de limpeza e de conservação pelos seus usuários. Afinal, o que importa é que a minha sala deve estar está limpa!

Contudo, por aqui, a limpeza dos carros, bem privado, é uma prioridade na agenda agitada de milhares de proprietários de veículos. Cito como exemplo as condições do carro de uma amiga dos tempos da graduação em Salvador, em diversas ocasiões em que eu viajei no seu caro como carona. Após algumas idas e vindas, percebi que o automóvel não apenas era utilizado como meio de locomoção, mas também como uma espécie de closet, onde a motorista costumava carregar uma mala com roupas, segundo ela para uma eventual emergência, além de um kit de maquiagem, calçados extras e acessórios.

Certamente, a imagem antecipada pelos leitores do presente texto a respeito das condições do interior desse carro é aquela de objetos espalhados por todos os acentos do veículo, inclusive lixo! Mas, muito pelo contrário! Apesar do estado de bagunça organizada, jamais notei embalagens de doces, pipoca, containers do McDonald’s ou restos de alimentos espalhados pelo carro.

No Brasil, é muito comum encontrar uma pequena sacola, popularmente conhecida como lixeirinha, que fica pendurada na alavanca de câmbios dos carros. A tal da “lixeirinha” contribui significativamente para que centenas de condutores mantenham o interior dos seus automóveis em considerável situação de limpeza e higiene.

Além disso, a faxina e a higienização dos carros, nos finais de semana, ocupa um lugar de destaque na agenda de muitos brasileiros. Quem nunca escutou a expressão: “pobre, mas limpinho”? A sala de estar e o carro são cartões de visita individuais, enquanto no Canadá os espaços públicos são cartões de visita coletivos.

A popular frase – “sou pobre, mas sou limpinho” – revela o quanto nós, brasileiros (a maioria), atribuímos mais importância à condenação moral e à reputação de ser zeloso com as condições de higiene do patrimônio privado. É esse receio de ser recriminado, por conta de atos e condutas privadas, e a falta de consciência sobre deveres e obrigações com a conservação do patrimônio público que orienta a prática de um número expressivo de cidadãos no Brasil.

Em ‘A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil’, o antropólogo Roberto DaMatta analisa tipos de relações e comportamentos que nós brasileiros desenvolvemos com os espaços individuais e coletivos. DaMatta conclui que a sociedade brasileira é muito mais zelosa com os espaços individuais, privados, do que com os espaços públicos e de uso coletivo.

Por exemplo, quantos passageiros de ônibus e de veículos privados jogam, pela janela bituca de cigarro, embalagens de alimentos, garrafas de bebidas, além de sobras de alimentos consumidos durante a viagem? Quantos varrem o lixo da calçada em frente às suas casas para a rua?

Porém, quantos guardam o lixo produzido em deslocamentos pelas vias públicas e espaços de sociabilidade e, na falta de uma lixeira, retornam para casa com o material para depositá-los no container de lixo dos seus lares?

As respostas para essas perguntas constituem um verdadeiro complexo de vira-lata!

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