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As margens da cidade e o que elas nos contam

  • Fabio de Oliveira Neves
  • 18 de nov. de 2019
  • 3 min de leitura

Professor Adjunto de Geografia – UNIOESTE

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie tornou-se um destaque da plataforma de conferências TED Talks, há 10 anos, com o vídeo The danger of a single story. Em aproximadamente 18 minutos, falou sobre o risco de se aceitar uma única história (mesmo em diferentes versões), sobre um lugar, pessoa ou qualquer outra coisa. A sua colega de quarto em uma universidade americana tinha piedade dela antes mesmo de a conhecer (influenciada, de certo, pela história única de catástrofes sobre a África). Não havia espaço para outro sentimento além de piedade, muito menos para uma relação entre iguais. Um professor, ao avaliar o seu romance, reprovou-a por sua história não ser “autenticamente africana”, pois seus personagens pareciam muito com ele, um homem de classe média, e dirigiam carros. A própria escritora admitiu ser vítima de uma única história quando, saindo dos Estados Unidos, visitou o México e surpreendeu-se em ver o cotidiano das pessoas. Não eram todos imigrantes abjetos espoliando o sistema de saúde americano e sendo presos na fronteira.

Podemos transpor esse raciocínio para vários campos do conhecimento. Jean Gouhier, criador da rudologie (ciência dos resíduos), deu uma bela demonstração de como transpor as “histórias únicas”. Dentre suas propostas, estava a de olhar o “avesso” da economia e da sociedade. Nesse sentido, apontou dois elementos socioespaciais relevantes: os resíduos e as margens das cidades.

O geógrafo francês via os resíduos como miroir social, ou seja, um espelho que conta quase tudo sobre a sociedade (hábitos, costumes, renda, cultura etc.). Seriam, de fato, muito mais do que um problema de gestão e de como livrar-se deles. Seria prolífico estudar os resíduos buscando compreender a sociedade. Ele também olhou para as margens das cidades. O que se encontra nelas: o desprestigiado? Aquilo que é relegado a um segundo plano? O rebotalho das produções da cidade? Os resíduos do cotidiano social? Os pobres urbanos (ou ainda, como escreve Jesse de Souza, a “ralé”)?

Talvez seja comum, por relatos, notícias, pela literatura e meios de comunicação, recebermos uma história única e trágica, mas com diferentes versões, sobre as margens das cidades. São muitos exemplos que convergem para uma mesma narrativa: as cidades-dormitório às margens das regiões metropolitanas e suas populações desesperançadas; os problemas do programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) e os bolsões de pobreza que continuam a ser produzidos às margens das cidades brasileiras (sem alterar o padrão periférico de distribuição dos pobres urbanos); os usos nada nobres que se concentram às margens das cidades (ferros-velhos, desmanches de automóveis, estações de tratamento de esgoto, pedreiras, aterros sanitário e lixões); os depósitos clandestinos de pneus, lâmpadas, sofás, entulho, lixo doméstico, etc.

Não aceitar “histórias únicas” é evitar restringir-se aos problemas e carências das margens das cidades, abrindo-se a novas leituras, outras histórias. Para as pessoas em geral, habitar à margem da cidade significa estar mais distante do exercício da cidadania. Podem ter casa própria (com o MCMV ou algum programa de regularização fundiária), mas têm péssimas condições de habitabilidade (ausência de serviços públicos próximos, grandes necessidades de deslocamento cotidiano com custos elevados, difícil acesso à educação e saúde públicas, entre outras). Contudo, não deve ser uma história só de tragédias ou versões de uma mesma história. É nesses espaços que importantes ações políticas acontecem: a organização de movimentos sociais; relações de cooperação e colaboração entre famílias; pressão organizada junto ao poder público para ter acesso a investimentos; relações políticas clientelistas, mas que trazem benefícios para a população “invisível” que habita nesses locais; estratégias de sobrevivência que envolvem atividades criminosas ou não; e uma série de outras histórias.

A noção de margem também não precisa ser reduzida à margem geográfica, isto é, áreas periurbanas e limites do tecido urbano. A margem está também no centro da cidade, como o histórico e emblemático Morro da Providência, ou em áreas nobres, como o conjunto habitacional Cruzada São Sebastião no bairro do Leblon. Além das distintas cracolândias que pululam nas mais diferentes grandes cidades brasileiras. Certamente, essas margens convidam a ler suas “outras” histórias.

Apesar de certas forças de inércia, rugosidades (como diria Milton Santos), é inevitável reconhecer que a margem está em movimento e transformação. Ela é política e social. É dinâmica. É tolerada enquanto mantém-se “em seu lugar” e “cumprindo com suas funções”. É preciso tentar ler suas diferentes histórias, olhar os seus rostos (já que não se trata só de materialidade, mas de sociedade). É preciso pensar como ela faz parte como engrenagem da cidade brasileira, da geopolítica da cidade. Por que não estudar a cidade pelo “avesso” do palco principal? Está aqui um desafio: o de tentar compreender as margens das cidades e o que elas nos contam, fugindo assim das diversas versões de uma história única.

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