Conselhos Tutelares: aprofundamento da democracia ou repetição de velhos vícios?
- Daniel Abreu de Azevedo
- 9 de dez. de 2019
- 4 min de leitura
Doutor em Geografia - UFRJ
Professor do Colégio Pedro II
No dia 06 de outubro de 2019, os cidadãos cariocas tiveram o direito de votar para os representantes no Conselho Tutelar de suas respectivas áreas de abrangência. Se você está lendo esse texto e não tem ideia do que estou falando, não tem problema. Você não é o(a) único(a). Apesar de ser o único Conselho com representantes eleitos diretamente pelo morador do município, o órgão ainda é pouquíssimo apropriado pelo cidadão, colocando sua legitimidade democrática em xeque.
O órgão foi criado no contexto da renovação constitucional brasileira em 1988, no ensejo por uma sociedade democrática depois de longas décadas sob regime autoritário militar. Era o momento de aprofundar a democracia, trazendo mais cidadãos para participação nas decisões públicas, transformando, pelo menos em teoria, a própria ideia de democracia representativa para uma considerada mais participativa. A Constituição de 1988 e a criação dos Conselhos (em diferentes escalas políticas) tornaram o Brasil o centro das atenções na década de 1990 com experiências institucionais analisadas por distintos autores nacionais e internacionais. O orçamento participativo de Porto Alegre, por exemplo, transformou-se numa verdadeira panaceia do momento. Problemas na democracia? Era só criar novos canais de participação popular que tudo se resolveria!
Apesar de ter sido criado somente junto ao Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, é nesse contexto otimista que se discutiu o Conselho Tutelar (doravante referido como CT). De importância ímpar para zelar pelos direitos desses grupos etários, o CT está vinculado ao Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Entretanto, ao contrário do Conselho no qual está inserido, o CT é dividido territorialmente no município do Rio de Janeiro em dezenove áreas de abrangência, cujos seus cinco conselheiros são eleitos diretamente por toda a população que possui registro eleitoral naquele território.
Em artigo publicado em 2018*, as eleições de 2016 haviam sido analisadas e constatou-se que o órgão sofria de uma falta de legitimidade democrática, a partir do momento em que ambas as ideias de participação e representação, pilares da democracia representativa (e também do que convencionalmente se denominou como democracia participativa), eram fracamente postas em prática. À época, um representante do CT 02 foi eleito com apenas 227 votos, representando 0,38% das pessoas que estavam aptas a votar. Isso se repetia de igual modo em todos os outros CTs, independentemente da área que representava. É importante lembrar que a partir das eleições de 2016, cada conselheiro passou a receber remuneração mensal de R$3.500,00 da prefeitura do Rio, isto é, ao multiplicar esse valor por todos os 90 conselheiros dos dezoito CTs do município do Rio de Janeiro naquele momento, tem-se um total de R$315.000,00 dispendido mensalmente pelo poder público municipal com salários. Além disso, em diversas entrevistas realizadas e também em reportagens vinculadas na mídia, foi possível encontrar denúncias contra representantes de CTs que teriam envolvimento com tráfico de drogas e grupos milicianos, visto a baixa quantidade de votos para eleger alguém.
Nas eleições de 2019, foi possível notar que houve um aumento expressivo de participação eleitoral. Tudo leva a crer que isso tem a ver com a polarização atual da sociedade, que refletiu em pedidos divulgados em redes sociais clamando por maior participação cidadã para combater uma suposta apropriação do órgão por setores evangélicos ligados ao prefeito do Rio de Janeiro. Em reportagem do dia 04 de outubro de 2019 no G1 Rio**, havia uma preocupação com a falta de organização da votação (algo também recorrente nos últimos processos eleitorais) e o favorecimento de grupos religiosos, além dos já reconhecidos representantes relacionados à milícia e ao tráfico de drogas. Como fazer esse órgão ser reconhecido e apropriado pela população? De que modo o único Conselho com eleição direta pode ser mais uma arma institucional para aprofundar a democracia em escala local? Como impedir que vícios políticos, como clientelismo, fisiologismo, e tantos outros ismos, não sejam a marca desse novo órgão?
A democracia é um sistema político que precisa ser pensado em diferentes escalas e espaços políticos. Em um país com as dimensões do Brasil, sem dúvida, faz-se necessário uma boa engenharia político-geográfica que transforme os valores teóricos da democracia em vida real, a vida que interessa ao cotidiano do cidadão. Assim, participação e representação, princípios básicos da democracia, devem ser analisados geograficamente, dentro de seus contextos espaciais, sem nenhum tipo de naturalização e romantização das escalas políticas. Qualquer construção de um novo órgão institucional que não leve em consideração esses aspectos corre o risco de apenas reproduzir os velhos vícios políticos já bastante conhecidos no país.
Sem dúvida, a existência de órgãos especializados na luta pelas crianças e adolescentes é fundamental em uma sociedade onde há constantes crimes perpetrados contra esse grupo. Entretanto, a ilegítima roupagem democrática pode ajudar a esconder práticas que, ao final, tornam esses novos recursos não um avanço na relação entre instituições e cidadãos, mas sim, instrumentos na perpetuação de hábitos nocivos ao já frágil sistema democrático brasileiro.
*Artigo: Os limites da democracia participativa: uma análise a partir dos Conselhos Municipais no Rio de Janeiro, publicado na revista GEOgraphia, em 2018.
**https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/10/04/conselheiros-tutelares-eleicao-sem-transparencia-e-cercada-por-polemicas.ghtml
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