A China e a Beltand Road Iniciative: um desenho geopolítico pouco convencional
- Pablo Ibañez
- 13 de fev. de 2020
- 6 min de leitura
Doutor em Geografia - USP
Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
A velocidade do crescimento asiático e, em particular, do chinês, nos últimos 30 anos tem desafiado até os mais atentos analistas internacionais. Algumas quebras de paradigmas, como o maciço investimento em inovação, a partir dos anos 2000 e o lançamento de uma estratégia global, a Beltand Road Initiative (BRI), em 2013, promoveram mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento chinês com alcance regional e global impensável há trinta anos. Não à toa que Brzezinski, um dos mais renomados estrategistas geopolíticos americano, erroneamente, profetizou em suas análises no The Geostrategic Triad. Living with China, Europe, and Russia, de 2001, que o gigante asiático não seria nunca uma potência global, apenas uma potência regional com capacidade de atender seus interesses internos.
A China contemporânea, efetivamente, desafia. O número exponencial de estudos sobre distintas abordagens, não apenas no Ocidente, mas em todas as regiões, é uma das mais claras facetas da crescente importância desse país. São enfoques econômicos de matrizes teóricas das mais diversas, marxistas, keynesiana, liberal, com trabalhos amplamente reconhecidos, vide Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim. Estudos críticos sobre os aspectos financeiros e a preocupação com o estouro de uma bolha imobiliária. São os casos dos textos de Robert Kurz e Mylène Gaulard, que vêm alertando para uma possível crise em decorrência desse fenômeno.
Por outro lado, a dimensão geopolítica da expansão do poderio chinês também é uma das mais relevantes e desafiadoras fontes de discussão pela sua velocidade, capacidade de ação, dimensão geográfica e premissas que fogem aos tradicionais preceitos geopolíticos ocidentais ligados à defesa. Ainda que clássicos elementos de fronteira - a exemplo de sua área Ocidental e os conflitos históricos com a Índia e os atuais problemas decorrentes da expansão do terrorismo ligado a grupos islâmicos, e contenciosos no Mar do Sul da China e as definições das áreas de influência, assim como o desenvolvimento de sua força naval, a sua mais forte estratégia, a BRI, não está amparada em primeira instância na questão militar.
Os cinco pontos em que se baseiam a iniciativa são: coordenação de políticas, ampliação dos meios de comunicação, livre fluxo de comércio, integração financeira e entendimento entre os povos. Segundo a agência oficial de comunicação chinesa, Xinhua, a BRI veio para lutar contra protecionismos e isolacionismos. Mesmo que tenha sua principal linha de atuação entre a Ásia, a Europa e África, até 2019, o governo chinês já havia assinado mais de 173 acordos de cooperação, com 125 países e 29 organizações internacionais, nos mais diversos continentes. Para se ter uma pequena ideia dessa dimensão, há acordo firmado sob a égide da BRI com o Suriname, na América do Sul. Em termos financeiros, de 2013 a 2018, os investimentos diretos chineses nos países da BRI ultrapassavam US$ 90 bilhões, cifra extremamente considerável se levada em conta se tratar de uma estratégia capitaneada por apenas um país.
Em relação aos projetos, seguem alguns relativos à infraestrutura, disponíveis no documento The Beltand Road Iniciative. Progress, contributions and prospects, de 2019:
New Eurasian Land Bridge para promoção da conexão entre Ásia e Europa, com obras já inciadas a partir de Belgrade - Stara Pazova como parte da Hungary-Serbia Railway na Sérvia. Sendo que a via expressa internacional da China-Europa Ocidental que conecta a China ocidental, Cazaquistão, Rússia e Europa Ocidental está basicamente completa.
China-Mongolia-Russia Economic Corridor. uma rede de conectividade de infra-estrutura transfronteiriça composta principalmente por ferrovias, estradas e portos de fronteira.
China-Central Asia-West Asia Economic Corridor.a cooperação avançada em energia, conectividade de infraestrutura, economia e comércio e capacidade industrial na estrutura deste corredor. A China assinou acordos bilaterais sobre transporte rodoviário internacional com o Cazaquistão, Uzbequistão, Turquia e outros países, bem como China-Paquistão-Cazaquistão-Quirguistão, China-Cazaquistão-Rússia, China-Quirguistão-Uzbequistão e alguns outros acordos multilaterais sobre comércio internacional. transporte rodoviário, melhorando constantemente a construção de infraestrutura na Ásia Central e no Oeste da Ásia. O Fórum de Cooperação China-Arábia Saudita promoveu a complementaridade industrial entre a BRI e a Arábia Saudita
China-Indochina Peninsula Economic Corridor.conectividade das infra-estruturas e construção de zonas de cooperação económica transfronteiras através deste corredor. A via expressa Kunming-Bangkok foi concluída, enquanto as ferrovias China-Laos e China-Tailândia e alguns outros projetos estão em andamento. A cooperação começou na construção do corredor econômico China-Laos. A cooperação econômica entre China e Camboja, Laos, Mianmar, Vietnã e Tailândia está avançando constantemente. Papéis positivos para o mecanismo de cooperação China-ASEAN (10 + 1), mecanismo de cooperação Lancang-Mekong e cooperação econômica na Grande Região do Mekong (GMS) estão se tornando mais claros.
China-Pakistan Economic Corridor.Um plano de cooperação com foco em energia, infraestrutura de transporte, cooperação em parques industriais e Porto de Gwadar foi implementado no âmbito deste corredor. Comentado anteriormente.
Bangladesh-China-India-Myanmar Economic Corridor. projetos de desenvolvimento institucional, conectividade de infraestrutura, cooperação em parques comerciais e industriais, cooperação e abertura no mercado financeiro, intercâmbio cultural e cooperação e estudo de viabilidade para a Ferrovia Muse-Mandalay e o Acordo-Quadro sobre o projeto do porto de alto mar da zona econômica especial de Kyauk Phyu.
Vale ressaltar a amplitude geográfica desses corredores, que não representam a totalidade dos empreendimentos e projetos da iniciativa, mas parte substancial em termos de infraestrutura. Na esteira da BRI, esses corredores, pelo menos segundo relatos oficiais, não fazem parte de uma estratégia geopolítica claramente militar. A ênfase no comércio, nos fluxos, no abastecimento, nas questões energéticas, é efetivamente mais clara.
Além dos elementos acima citados, os exemplos sob coordenação da BRI são extensos e promovem desde parques industriais e tecnológicos a parcerias culturais para promoção da história, língua e cultura chinesa nos países partícipes. Porém, chamam a atenção os focos dados ao multilateralismo, com criação de instituições e redes de discussões e planejamento multilaterais, e a diversificação e ampliação de formas de investimentos e financiamentos, com a crescente relevância dos Bancos de Desenvolvimento. Há também prioridade na criação de novas modalidades de financiamento, como a utilização dos fundos soberanos e dos fundos de investimento dos países participantes, a exemplo da Autoridade de Investimentos de Abu Dhabi dos Emirados Árabes Unidos, a China Investment Corporation e outros fundos desse tipo que aumentaram acentuadamente o investimento nas principais economias emergentes participantes da iniciativa. Merece atenção também o Fundo Conjunto de Investimentos China-UE, que iniciou suas operações em julho de 2018 com um capital injetado de 500 milhões de euros do Fundo da Rota da Seda e do Fundo Europeu de Investimento, que ajudou a BRI a se encaixar no Plano de Investimentos para a Europa.
O conjunto da obra, como incialmente citado desafia em muito análises geopolíticas mais clássicas. Se de um lado, há uma efetiva estratégia de poder com uma geografia impressionante. Por outro, não há tradicionais mecanismos de alianças militares ou estabelecimento de claras delimitações territoriais via bases militares e manutenção de mecanismos de controle extraterritoriais. Não menos importante são as criações de objetivos multilaterais, instituições de financiamento, acordos e formação de alianças econômicas, elementos de uma geopolítica, no mínimo, peculiar.
É fundamental ficar claro que não há ingenuidade nenhuma nesta leitura. A ideia é tentar entendê-la como uma geopolítica que depende de clareza dos objetivos particulares da iniciativa, de proposições analíticas renovadas e de fuga de esquemas muito conhecidos da teoria geopolítica. Thereza Fallon e Francis Sempa, por exemplo, escreveram artigos retomando o conceito de heartland para tratar a BRI. Ainda que tenham ficado conhecidas as posições geográficas desse ‘coração’ mundial ou sua área crescente, innercrescent, não parece adequada a utilização de uma teorização datada do início do século XX, pautada em um expansionismo territorial de diversas potências sem paralelo na história mundial para tratar um momento ímpar de crescimento de uma potência até 30 anos completamente desacreditada com desafios internos dos mais problemáticos do planeta.
Uma leitura da BRI depende em muito de aprofundar os seus desdobramentos, ter clareza de suas capacidades de estabelecer laços de longo prazo e saber quais serão as institucionalidades dela derivadas. Blackwill e Harris com a teoria da geoeconomics, utilização de mecanismos econômicos para objetivos geopolíticos, parecem ser os autores que mais têm chegado próximo de uma análise mais contundente sobre a China contemporânea, mesmo ainda não tendo feito um profundo estudo sobre a BRI. As novidades que a China traz com a estratégia em questão são inúmeras. Só a questão financeira, que alguns autores querem tratar como um novo Plano Marshall, já passaram a ser refutadas por também se utilizarem de expediente histórico desconectado com as atuais ações do maior país asiático.
A geopolítica que tem sido desenvolvida através da BRI é global, extremamente diversificada, busca conciliar interesses, lida com países que apresentam distintos graus de rivalidade, regiões clássicas de influência de grandes potências – vide Ásia Menor, utiliza de um expediente de comunicação fortemente conectado com os ditames do governo central através da Xinhua e do Beltand Roal Forum, e tem desenhado uma arquitetura financeira sem precedentes. Enquanto o Ocidente bate cabeça entre uma direita ‘ocidentalista’, fundamentalismos liberalizantes e uma esquerda com sérias dificuldades de apresentar projetos robustos de desenvolvimento, a China segue a passos largos ocupando cada vez mais espaços conectados com essa sua grande estratégia. Antes de rotulá-la, criticá-la ou tentar encaixá-la em esquemas teóricos oriundos de contextos completamente distintos dos atuais, urge a necessidade de aprofundar o conhecimento, estruturar esquemas de análise e acompanhar seriamente os desdobramentos dessa inciativa. Só assim assumiremos capacidade estratégica para lidar com os desafios que essa gigantesca novidade geopolítica tem a nos apresentar.
Comments