Paisagem e Política, uma discussão necessária
- Rafael Winter Ribeiro
- 21 de abr. de 2020
- 4 min de leitura
Professor Associado do Departamento de Geografia da UFRJ Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGG/UFRJ
No domingo 19 de abril de 2020, em meio ao crescimento do número de mortos em função da pandemia de Covid-19, o presidente da República fazia mais uma de suas saídas desafiando os defensores do confinamento e contribuindo mais uma vez para tornar o enfrentamento da doença um conflito político. Entretanto, nesse episódio, adicionou outro elemento no tensionamento em que parece investir, discursando em carro aberto numa manifestação que atacava as instituições democráticas do país e defendia a volta do regime militar. Na manhã do dia seguinte, entretanto, diante da grande repercussão negativa, fez declarações dizendo que não defendia nenhuma ruptura democrática e que nunca teria dito isso naquele domingo. De fato, naquele dia, retirando a parte em que dizia que não iria negociar – um claro conflito com o princípio de que a negociação é o cerne da política e da democracia, - o presidente usou apenas a fórmula seguida por ele inúmeras vezes, com afirmações como “acabou o velho Brasil”, “não há mais espaço para corruptos”, etc. Entretanto, o que tornou o episódio um fato de tamanha repercussão foi a sua espacialidade, ou antes, a paisagem produzida.
O episódio ocorreu em Brasília, a capital do país, no Dia do Exército, diante de sua sede. Ali, aquele espaço tomado por manifestantes, foi transformado em um espaço político, um espaço político aberto, na tipologia desenvolvida por Iná Elias de Castro e já aplicada em diferentes estudos que mostram os efeitos da transformação de espaços públicos em espaços políticos. Entretanto, nesse caso, mesmo sendo bem pequeno o número de manifestantes, o que produziu grande impacto e visibilidade, um dos objetivos centrais de qualquer manifestação, foram as inúmeras faixas com as reivindicações pedindo intervenção militar e reedição do AI5, além da presença do presidente. Se a sua fala fosse em outro contexto, teria sido apenas mais uma, entretanto, as imagens de sua presença sinalizando apoio em meio a estas faixas, diante do QG do Exército na capital federal, imprimem um significado muito maior à sua comunicação. É a composição da paisagem naquele momento da fala que marca o principal efeito político e coloca destaque sobre a formação daquilo que podemos chamar de paisagem política. Afinal, o fato político não foi o conteúdo em si da fala presidencial, mas o contexto no qual ela foi feita e todas as imagens que dali foram veiculadas. A presença, a fala, a localização e a ambientação construída compreendem elementos interligados numa paisagem que constitui o fato político em questão. Nesse sentido, mais do que um mero cenário em segundo plano, a paisagem desempenha um papel central na comunicação, tornada, ela também política.
Milton Santos deixou um legado intelectual fundamental para entendermos o papel da espacialidade no mundo contemporâneo. Entretanto, discordamos de sua posição com relação ao papel da paisagem. Quando afirma: “a paisagem é o morto”, ou “a paisagem é o estático” ou ainda faz a comparação com o lançamento de uma bomba de nêutrons que mataria o espaço e deixaria apenas a paisagem, como o fez em uma de suas principais obras, “A Natureza do Espaço”, não poderia estar mais errado. Longe de ser um mero cenário ou a fotografia de um momento, estático e sem pessoas, a paisagem tem um caráter comunicacional dinâmico no qual a intepretação é fundamental.
André Louis Sanguin, quando nos anos 1980 publicou um artigo sobre o que chamava de paysage politique, estava preocupado com os monumentos e elementos colocados na paisagem que refletiriam a organização do Estado, entendendo a política muito mais como o tipo de organização estatal. Entretanto, se tomarmos a política num sentido mais próximo da Ciência Política ou, por exemplo, como queria Hannah Arendt, como o exercício do convívio entre os diferentes, ou forma e expressão dos diferentes interesses presentes na sociedade e suas formas de pressão, resolução e controle, o que diversos episódios como o desse domingo nos mostram é que a paisagem pode desempenhar um papel muito maior na política, sobretudo num mundo em que a imagem e seus meios de difusão ganham uma importância fundamental.
Se a paisagem tem como marca de nascença como conceito o fato de estar ligada à percepção do mundo, se ela não é o que se vê, mas como se vê, isto é, uma construção de sentidos, uma narrativa, como já defendi em alguns trabalhos, seu caráter de produção, recebimento e interpretação, característicos da comunicação, é fundamental para torná-la política. É verdade que o caráter sensorial e interpretativo da paisagem não está ligado exclusivamente à visão, daí podermos falar em paisagens sonoras ou paisagens olfativas, mas é verdade também que a visão permanece sendo o principal dos seus elementos e vem daí o papel central da imagem. Os mecanismos atuais de captação e difusão de imagens podem levar uma paisagem efêmera como a de uma manifestação a um público muito maior no tempo e no espaço, produzindo impactos num nível muito maior e ampliar o papel da paisagem política no mundo contemporâneo.
O que este episódio nos mostra é que é impossível ignorar a produção de paisagens políticas como elementos da política. Se comunicação e visibilidade são elementos centrais da política, a paisagem, entendida dessa forma, não pode ser ignorada. A política se faz também da e na paisagem.
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