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A potência política das ruas

  • Sérgio Borges
  • 30 de abr. de 2021
  • 6 min de leitura

Sérgio Borges

Doutor em Geografia - UFRJ

Pesquisador membro do GEOPPOL


A multidão que se reuniu no lado de fora do tribunal de Minneapolis, em Minnesota, nos Estados Unidos, reagiu com aplausos e euforia após o júri popular anunciar o veredicto do julgamento do ex-policial norte-americano, Derek Chauvin, condenado por provocar a morte do cidadão afro-americano George Floyd, em 25 de maio de 2020.

Derek Chauvin foi condenado por assassinato e homicídio culposo por prender George Floyd e sufoca-lo na calçada, com o joelho no pescoço de Floyd durante nove minutos, enquanto Floyd dizia que não conseguia respirar. A morte de Floyd foi filmada e exibida em telejornais em todo o mundo. O caso provocou reações e forte comoção popular não apenas nos Estados Unidos, com protestos marcados por repressão policial e violência em dezenas de cidades pelo país e pelo mundo.

Durante semanas, integrantes do movimento Black Lives Matter, ativistas do movimento negro norte-americano e cidadãos indignados saíram às ruas de diversas cidades dos Estados Unidos demandando o combate ao racismo sistêmico, estrutural e institucional no país, a condenação de Chauvin e justiça para Floyd.

Em comunicado, Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, afirmou que qualquer veredicto diferente da condenação do policial branco pelo assassinato do segurança negro “teria sido uma negação da justiça” (Kenny, 2021). Ainda segundo Bachelet, resta muito a ser feito para acabar com o racismo sistêmico: “Como infelizmente constatamos nos últimos dias e semanas, as reformas das forças de segurança nos Estados Unidos não são suficientes para impedir que as pessoas de origem africana sejam assassinadas” (Reuters, 2021).

Para Joshua Chaffin e Taylor Nicole Rogers (2021), a sentença de culpa é um caso raro de condenação por assassinato de policiais em serviço nos Estados Unidos, onde desde 2005 um total de 140 policiais foram presos sob a acusação de homicídio ou homicídio culposo, como resultado de tiroteios em serviços, e, entre 97 dos casos concluídos, apenas sete resultaram em condenações por homicídio. Mais da metade dos casos foram arquivados ou resultaram em absolvições, enquanto alguns foram enquadrados como ofensas menores (Chaffin & Rogers, 2021).

Ainda segundo Chaffin & Rogers (2021), a “polícia também se beneficia do fato de escrever os primeiros relatórios sobre os incidentes com tiroteio, e pode moldar a narrativa”. Além disso, os “poderosos sindicatos frequentemente pressionam os promotores distritais a não processarem e limitam a cooperação policial se o fizerem”, o que resulta em poucas condenações e pouco tempo de prisão para agentes que cometeram homicídios em serviço.

Então, o que contribuiu para a condenação de Derek Chauvin?

A pressão das ruas sobre o caso promoveu não apenas uma forte comoção social, ao chamar atenção para a violência praticada por policiais brancos contra a população negra nos Estados Unidos, mas também impôs com força a questão do racismo sistêmico na agenda política nos Estados Unidos.

Em 2020, o tema da reforma policial foi uma das promessas de Joe Biden durante a disputa pela presidência dos Estados Unidos. Ainda em 2020, durante os protestos por justiça pela morte violenta de Floyd, democratas apresentaram no Congresso um projeto de ampla reforma das forças policiais nos EUA.

A hipótese de que a pressão das ruas tem o potencial de exercer algum efeito na opinião pública e na política institucional, afetando debates, posicionamentos e decisões de políticos tem sido trabalhada no âmbito das pesquisas do GEOPPOL, que tem demonstrado que há uma relação entre protestos e efeitos políticos.

Essas pesquisa têm revelado a validade da suposição da professora Iná Elias de Castro, segundo a qual os espaços abertos das cidades, quando ocupados por manifestantes, ou seja, invadidos por fenômenos políticos, convertem-se em um espaço político aberto, e que esses espaços possuem uma conexão com os espaços políticos exclusivos (Congresso, Assembleias...), o que pode ser observado no comportamento e nas ações dos agentes dos poderes constituídos (CASTRO, 2018a;.2018b)

O caso Floyd demonstra que a potência das ruas dos indignados – espaços políticos abertos – não apenas se incide sobre os espaços de decisão política. Embora ainda pesquisas sobre a relação entre protestos e a opinião pública, suspeita-se que a as redes sociais digitais e o enquadramento da imprensa alternativa sobre manifestação têm exercido, cada vez mais, um papel significativo na formação da opinião pública e que essa tem exercido algum efeito em decisões judiciais, como na decisão do júri que condenou Derek Chauvin.

Outro caso que serve para ilustrar tal tema vem do Chile. Em outubro de 2020 foi divulgado o resultado de um plebiscito realizado no país sobre a redação de uma nova Constituição. A proposta recebeu o apoio majoritário de 78 por cento dos eleitores. A demanda por uma nova Carta Magna emergiu nas ruas de Santiago, em 2019, com a onda de protestos conhecida como o estalido social.

A decisão favorável pela substituição da Constituição que remonta a era do general do exército Augusto Pinochet (1980) e, portanto, uma herança do regime militar chileno (1974-1990), revelou, mais uma vez, a potência política das ruas.

A ideia de que a rua é locus do poder instituinte não é nova. O politólogo italiano Norberto Bobbio é autor de uma celebre metáfora sobre o poder da Praça – e da rua – e sua relação com o Palácio (locus do poder instituído). Para Bobbio, “vista do palácio, a praça é o lugar da liberdade silenciosa; visto da praça, o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair (BOBBIO, 1986, p.78).

Ainda nessa direção, Romano (2013) argumenta que “a praça reúne muitos indivíduos, e sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes”. Nesse sentido, “manifestações de rua significam uma multidão de pessoas indignadas com os palácios” (ROMANO, 2013, n.p).

Ao analisar uma série de mobilizações políticas que irromperam em diversas partes do mundo, nos últimos anos, inclusive no Brasil, em 2013, a tese de Sérgio Borges reuniu uma série de evidências que substanciam o suposto defendido por Castro (2018), segundo o qual a rua é um espaço político. O trabalho que realizamos (Borges, 2018;2020) demonstra que há uma potência política nas ruas – espaços políticos abertos –, que se traduz em impactos políticos – Political consequences and outcomes (Giugni, 2008). Na mesma linha, a pesquisa de tese de Guilherme Félix Machado, pesquisador do GEOPPOL, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é mais uma valiosa contribuição na atualização da agenda de pesquisa da Geografia Política, oferecendo dados empíricos que suportam a ideia de que há uma potência política nas ruas dos indignados.

O tema das consequências políticas afetadas pela mobilização nas ruas está na ordem do dia. Trata-se então de ficar atento ao que elas andam dizendo e às muitas linguagens que elas assumem, inclusive suas expressões em imagens e slogans. O espaço nunca é neutro e o das ruas menos ainda.


Referências:


BOBBIO, NORBERTO. Il Palazzo e la Piazza. In: L’utopia capovota. BOBBIO, N. La Stampa, Terza pagina, 1986.


BORGES, S. Espaço Político e tensão democrática: os protestos recentes e a potência política das ruas. Geografares, vol. 26, no. 26, 2018, pp. 162–181.


CASTRO, I. E. Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer? Geografares, vol.26,nº 26, 2018a.


______. Espaço político. GeoGraphia, v. 20, n. 42, 2018b.


CHAFFIN, J ; ROGERS, T.N. Chauvin guilty verdict is rare instance of police murder conviction. Disponível em : < https://www.ft.com/content/5330df1c-d716-461e-b25d-b171bd3a6e4f>. Acessado em: 21 de abril de 2021.


GIUGNI, Marco. Political, Biographical, and Cultural Consequences of Social Movements. In: Sociology Compass, 2008, vol. 2, n° 5, p. 1582-1600. doi: 10.1111/j.1751-9020.2008.00152.x


KENNY, P. George Floyd case verdict 'momentous': UN rights chief. Disponível em: < https://www.aa.com.tr/en/americas/george-floyd-case-verdict-momentous-un-rights-chief/2216161#>. Acessado em: 21 de abril de 2021.


MACHADO FILHO, G.F. Dos Espaços da sociabilidade aos espaços da ação política: transfiguração de ruas e praças em espaços políticos. Geografares, vol. 26, no. 26, 2018, pp. 214–234.


______. Espaços da política: a relação entre o espaço político das Assembleias e o espaço político das ruas no contexto das manifestações políticas brasileiras contemporâneas. 2017. Dissertação (Mestrado em Geografia) Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.


REUTERS. U.N. rights chief says George Floyd murder case shows scale of systemic racism. Disponível em:< https://www.reuters.com/article/usa-race-georgefloyd-un-idINL8N2ME3R1>. Acessado em: 21 de abril de 2021.


ROMANO, R. Demofobia em marcha. Disponível em:< http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,demofobia-em-marcha-imp-,1048604>. Acessado em 02 de junho de 2017.


 
 
 

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